A delicada arte de viver muito
Viver muito
sempre foi, por séculos, uma raridade quase mítica. Era coisa de avó centenária
que conhecia a cura das doenças no cheiro do mato, ou de personagem de romance
russo, desses que morriam em São Petersburgo, sob a neve, citando Aristóteles
em voz embargada.
Vivemos
mais. Isso é fato. A medicina avançou, os antibióticos viraram gente da casa, o
colesterol passou a ser vigiado como se fosse um criminoso reincidente. A
expectativa de vida subiu, e com ela a ideia, quase ingênua, de que bastaria
durar para que tudo desse certo.
Mas viver muito não é a mesma coisa que viver bem. E é aí que começa a grande arte.
Porque a verdade é que a longevidade chegou antes do manual de instruções. Achávamos que envelhecer seria como alcançar um mirante: olhar para trás com serenidade, cruzar os braços sobre o próprio legado, saborear os frutos de uma vida bem vivida.
Mas a
velhice, como a infância, exige cuidados diários, e também alguma poesia.
O corpo,
esse velho cúmplice, começa a dar sinais de que o tempo passou. As juntas
rangem como portas de armário antigo, os reflexos hesitam, os músculos se
retraem.
Mas não é só o corpo que envelhece: às vezes o mundo ao redor também se torna estranho, distante. Os amigos partem, os filhos se dispersam, as calçadas ganham degraus invisíveis. E de repente, o que mais dói não é o quadril, é o silêncio.
E então vem ela: a queda.
Não só a
queda literal, essa que acontece no banheiro, no degrau da padaria, na pressa
inocente de atravessar a rua. Mas a queda simbólica: do entusiasmo, da
autonomia, da autoconfiança. A queda de uma imagem de si mesmo que antes era
firme, decidida, ágil. A queda de um modo de viver que não se encaixa mais no
corpo que agora abriga a alma com mais cuidado.
A
Organização Mundial da Saúde diz que um terço dos idosos sofre uma queda por
ano. E essa queda pode ser o primeiro passo de uma jornada difícil: fraturas,
cirurgias, internações, perdas, de mobilidade, de independência, de ânimo.
Porque o
envelhecimento também pode ser reinício. E preparar-se para ele é como preparar
um jardim: exige tempo, presença, escolhas. É preciso cultivar força, sim, não
para carregar sacos de cimento, mas para levantar-se da cadeira com leveza e
poder abraçar um neto sem receio de tombar. É preciso elasticidade, não só nos
músculos, mas nas ideias. E é preciso algo ainda mais raro: gentileza consigo
mesmo.
Sim, o
humor. Ele é, talvez, o músculo mais importante a ser mantido. Porque rir de si
mesmo, das gafes, das perdas de memória, do tropeço nas palavras, é um jeito de
desarmar o tempo.
A longevidade, quando bem-vivida, é como uma tarde longa e luminosa. Daquelas em que o sol demora a ir embora e o tempo parece suspenso entre uma lembrança e outra. Não é preciso correr. Nem competir. Basta estar inteiro: corpo e alma em compasso.
E
envelhecer bem não é luxo, nem sorte, é construção diária. Com passos firmes,
com gestos suaves, com a força das pernas e o riso no rosto. Com o cuidado do
corpo, sim, mas também com a ternura da memória.
Porque o
segredo não é apenas viver muito.
É fazer da
longevidade uma arte íntima, uma coordenação delicada entre o tempo e o desejo.
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Obrigada por participar. Luz &Paz!!!
Beijos fraternos!!